Os objetos têm um papel ativo nas interações entre humanos e não humanos: as coisas circulam, participam das relações sociais, têm agência. Eles podem estar saturados de vários significados e valores, enquanto sua materialidade pode moldar a atividade e a percepção humanas. O Objeto Fala é uma série de conteúdos digitais em que um objeto escolhido é apresentado em sua especificidade cultural e artística, destacando como a criação de um objeto é um evento complexo que entrelaça subjetividades, práticas, crenças e materiais.
O povo Wauja habita o alto Xingu, às margens do Rio Batovi. Sua milenar tradição de trabalhos em cerâmica é extremamente apreciada por outros grupos indígenas e atualmente está na base da sustentação econômica da aldeia. A origem cosmológica da cerâmica Wauja está na figura do Kamalu Hai, a mítica cobra canoa que trouxe o barro para a comunidade. Ele tem um corpo que lembra um jacaré e traz panelas cantantes nas costas.
Quando o Sol (Kemo) e a Lua (Kejo) criaram o dia e a noite, quebraram todas as panelas e vasilhames. O povo aprendeu a fazer cerâmica a partir da visão da cobra canoa descendo o rio. Em sua viagem pelo Batovi, o Kamalu Hai deixava seus dejetos como matéria prima para a fabricação da cerâmica e mostrava, com suas panelas cantantes as formas dos vasilhames. As peças que são produzidas até hoje são baseadas nos modelos que o Kamalu Hai trazia nas costas.
A produção das peças representa, assim, um saber ancestral e ritual, que conecta os wauja com a dimensão extra-humana de sua cosmologia.
O Objeto Fala: Kamalu Hai foi produzido por Laura Manganote e Patricia Dalcanale Meneses
Kintsugi, que pode ser traduzido como emendar ou reparar com ouro, é uma tradição e uma técnica centenária japonesa de reconstrução de cerâmicas quebradas que evidencia e ornamenta o reparo e as cicatrizes no corpo da peça fragmentada e reconstituída. A técnica consiste em emendar as partes da peça partida com laca urushi, uma resina vegetal, remover os excessos da laca por abrasão com carvão, e polvilhar pó de ouro ou prata sobre as emendas, trazendo destaque para as partes que foram reconstruídas. Independentemente do tipo de material utilizado para promover o conserto – ou renovação – da peça partida, é presente a evocação ao pathos das coisas, mono no aware, um tipo de cumplicidade com a matéria, com o humano e o não-humano, sua beleza e sua efemeridade, sua beleza na efemeridade. Nesse sentido, a prática não apenas de se remendar objetos quebrados sem esconder-lhes as imperfeições, mas de admirá-los ainda mais pelas imperfeições incorporadas, irmana-se ao fruir da brevíssima floração das cerejeiras, em uma ode ao dinamismo da vida e à passagem do tempo.
O Objeto Fala: Kintsugi foi produzido por Laura Manganote e Juliana Maués.
A capacidade plástica da argila evoca a transformação. Nas mãos do ceramista habilidoso, pode assumir formas variadas e, após a queima, consolidar de maneira duradoura o aspecto modelado. Transformação química, o cozimento da argila altera sua consistência física e ocasiona mudanças de cor, processos que podem ser controlados por meio de técnicas de manufatura.
Tal observação, de caráter tecnológico e material, permite uma aproximação ao conceito de agência relacional. Atributo presente em certos materiais e artefatos nas ontologias mayas, antigas e modernas, onde se admite a necessidade da ação humana para a transferência de protagonismo às coisas. Animada pela vida de quem lhes dá a vida, a matéria tornada objeto pode, por sua vez, modelar as relações do mundo ao seu redor.
Recuperado de um dos enterros das elites de Kaminaljuyu, Guatemala, esta vasilha efígie de peixe trípode é um exemplar único, que condensa não só o saber técnico, mas também a potencialidade de sua forma e formador. A argila tornada peixe (“Kay” em maya clássico e iucateco) agora transforma e é transformada pelo contexto em que está ativada. Na arte maya, peixes costumam assumir o papel de qualificadores aquáticos: a cerâmica convertida em peixe é vasilha-peixe.
A água é o meio de metamorfose principal dos heróis culturais ligados ao milho nas mitologias mayas. No Popol Vuh, Hunahpu e Xbalanque são mortos pelos senhores de Xibalba, o Inframundo. Seus ossos são moídos como milho e atirados na água, onde se regeneram primeiro como peixes-homens, depois transformam-se em dois indigentes para, a seguir, derrotar seus inimigos.
Os temas aquáticos estão muito presentes na arte de Kaminaljuyu, localizada onde hoje está a Cidade da Guatemala. Animais e deidades das águas, plasmadas em objetos portáteis e monumentos, atestam o esforço das elites governantes de estabelecer conexão direta com a força das águas em suas diferentes formas.
A vasilha efígie de peixe é parte deste empenho de criar vínculos com essas forças. Transforma a tumba onde foi depositada em ambiente aquático. A própria morte, desde a perspectiva dos mayas antigos, pode ser percebida como trajeto a ser percorrido e meio de metamorfose, presente nas expressões och bih e och ha’, respectivamente “entrar no caminho” e “entrar na água”. Ambas utilizadas em inscrições para anunciar a morte de governantes, que buscavam emular os heróis culturais do milho.
O Objeto Fala: Vasilha Kay foi produzido por Laura Manganote e Fernando Pesce.